A segunda metade do século XIX viu
eclodir obras literárias que rompiam com a visão romântica. Na França, Gustave
Flaubert lança Madame Bovary na qual
aborda o adultério cometido por Ema Bovary, mulher casada, que deveria
respeitar os laços “sagrados do matrimônio”; Em Portugal, Eça de Queiroz nos
brinda com O Primo Basílio, dentro
da mesma temática. Essas obras escandalizam toda a sociedade, a leitura delas era
proibida. Uma moça que as lesse ficava “falada”. Muito mais que mostrar o
adultério como pecado mortal, os autores tocaram na hipocrisia social, pois o
que eles escreviam acontecia aqui, ali, alhures.
N0 Brasil, Rio de Janeiro, duas obras
também abordam o tema: Memórias Póstumas
de Brás Cubas – adultério claro, consentido. Dom Casmurro traz em suas páginas insinuações de um menino que não
fora homem: Bentinho. Ele viveu “na barra” da saia da mãe, apaixonou-se por
Capitu- uma menina linda e confiante, posteriormente, uma mulher decidida e
forte. Ele passou a acreditar que ela o traía com Escobar e levou a vida nessa
dúvida cruel. Ainda hoje perguntamos: Capitu traiu ou não Bentinho?
O Ceará, não deixou por menos,
escandalizou a quem pode ler os romances: A
Normalista e O Bom Crioulo. No
primeiro Adolfo Caminha abordou o abuso sexual, no segundo o homossexualismo.
Caminha tocou no coração do dragão
ao apresentar as feridas sangrentas de uma sociedade que calava diante de abuso
sexual cometido dentro das “casas de família” cearenses. Era comum, naquele período,
virem meninas e moças do sertão para casa de conhecidos e familiares para
fugirem da seca, fome ou mesmo buscar trabalho.
Maria do Carmo é vítima da seca,
perde a família e fica na casa do padrinho João da Mata: A sua grande
paixão, seu fraco, era Maria do Carmo, a menina dos seus olhos, a afilhadinha; queria
um bem extraordinário à rapariga e tratava-a com carinho lânguido de amante
apaixonado do supremo grau do amor incondicional. Criara-a desde pequena, era
como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo beijá-la – sem
malícia, já se devia ver – nas faces, na testa, nos braços e até, por que não?
Na boca. (CAMINHA, p. 13, 2005).
Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a
sentar-se na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros e lá ia, sem fazer
beiço, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone
passado a ferro pela manhã. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma
palavra áspera; ao contrário – eram carinhos, cafunés no alto da cabeça,
cócegas, histórias d’almas d’outro mundo e gracinhas para ele rir... tinha
sempre um sorriso fresco e luminoso para “o seu padrinho”. E João da Mata
sentia um bem-estar incomparável, uma delícia, um gozo inefável ante aquele
esplêndido tipo de cearense morena, olhos de azeitona onde boiava uma névoa de
ingenuidade, cabelos compridos descendo até a altura dos quadris,
desanchando-se em ondas de seda finíssima... quantas vezes, quantas! Punha-se
por traz dos grandes óculos escuros, a olhá-la como um pateta, sem que ela sequer
percebesse a fixidez de um olhar cheio de desejo! (CAMINHA, p. 13, 2005).
“De beijos sem malicias ao ato
sexual”, A menina começara a ser violentada desde que chegara a casa do
padrinho, chegando a engravidar e perder o filho. Para silenciar os casos de
abusos era comum “arranjar” marido para as moças ou mandá-las ter o filho em
outro lugar, até o escândalo “esfriar”. Depois de tudo esquecido, pela
sociedade, a moça casava-se e tornava-se “uma senhora de respeito”.
Ninguém se indagava sobre as
sequelas desse ato, mas a sociedade seguia “ordeira e respeitadora”.
Silenciando os abusos e tentando silenciar quem os expunha. Caminha abriu o
vespeiro e pagou caro, mas algumas pessoas puderam ler e questionar os valores
que essa sociedade hipócrita impôs/impõe.